quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A Grande Final

Estes são os burros concorrentes do tão disputado Concurso de Natal 2009 da Barbearia do Senhor Luís. Mesmo sem ter pedido permissão para isso, atrevo-me a publicá-los porque considero uma colecção muito gira.
É claro que o meu burro ficou em primeiro lugar, ou não fosse o mais elegante e bem parecido. Mas o tão badalado prémio fantástico anunciado, não sei por onde anda.
Mas há mais. O Magnífico Júri, atropelando as regras mais elementares destes concursos, arranjou maneira de todos ficarem em primeiro lugar!... É claro que assim não há prémios que cheguem...
Mas eu não sou invejosa e, um primeiro prémio, mesmo partilhado, é qualquer coisa de muito importante e dá muita categoria!
Foi a primeira vez que me meti nestas confusões, e diverti-me. Aguardo o próximo, que por mim poderia ser para o Carnaval; só que o Sr. Barbeiro parece que se cansou...
Renovo os votos de um óptimo Natal, e quanto ao Ano Novo, logo se verá...mas palpita-me que vai ser um nadinha melhor do que o que tem sido. Já vai sendo tempo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

CONCURSO 2009 OS BURROS DO PRESÉPIO

para a Barbearia do Senhor Luís


Este burro apresenta-se elegante e escovado,vaidoso até, de frondosas sobrancelhas e focinho alvo, a pedir mesmo que o deixem figurar no Presépio; e promete bafejar com hálito fresco e bem cheiroso o recém-nascido Menino.
É mesmo para ganhar.
Sr. Barbeiro, espero ter sorte. Convidou-me, e eu cá estou.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Recordar Ary dos Santos





Ecce Homo

Desbaratamos deuses, procurando
Um que nos satisfaça ou justifique.
Desbaratamos esperança, imaginando
Uma causa maior que nos explique.

Pensando nos secamos e perdemos
Esta força selvagem e secreta,
Esta semente agreste que trazemos
E gera heróis e homens e poetas.

Pois deuses somos nós. Deuses do fogo
Malhando-nos a carne, até que em brasa
Nossos sexos furiosos se confundam,

Nossos corpos pensantes se entrelacem
E sangue, raiva, desespero ou asa,
Os filhos que tivermos forem nossos.

Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'

terça-feira, 10 de novembro de 2009

No dia de anos do Jorge

foto de C.C.


A FLOR TEM LINGUAGEM DE QUE A SUA SEMENTE NÃO FALA


A flor tem linguagem de que a sua semente não fala
A raiz não parece dar aquele fruto
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem
Retirada a linguagem
A semente é igual a flor
A flor igual a fruto
Fruto igual a semente
Destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.

Almada Negreiros

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

As minhas histórias II

foto de C.C. Nascente do Alviela

A Nascente do Alviela e os Morcegos


A nascente do ALVIELA é uma das mais profundas do mundo e está localmente associada com um complexo de grutas que representa o fenómeno cársico fluvial mais significativo de Portugal. Situada no concelho de Alcanena, é um local que se recomenda visitar.
Foi o que fiz. E ao penetrar no «santuário» dos morcegos cavernícolas que lá existe,( o Quiroptário) falou-se das velhas histórias que ao longo dos tempos se contam sobre os morcegos. E a minha memória imediatamente me fez lembrar, o morcego que durante as noites quentes de verão, na minha infância, entrava pela janela do quarto que era obrigatório manter aberta.
O morcego em voo rápido, percorria o quarto e saía.
-
O morcego é um «rato com asas», mas é bom para comer os «trompeteiros», não faz mal. Dizia-me a Ana, empregada lá de casa desde os meus 3 anos e que lá permaneceu.........Ela sabia coisas!...e eu acreditava, mas sempre tapava a cara com a dobra do lençol, espreitando com os olhos bem abertos até o ver sair.
No quiroptário aprendi que os morcegos comem 600 mosquitos/minuto. Seria então por isso, que o tal morcego entrava e saía rápido.

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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

2 de Novembro

Hoje, dia 2 de Novembro, o meu Pai fazia anos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Migalhas que ficaram IV

fotografia de c.c.





O Tio Domingos Cereijeiro



O Tio Domingos Cereijeiro era um pobre jornaleiro que vivia na atraente encosta de Casais com a mulher e dois filhos. O homem viera lá das bandas do norte, e, o nome que constava nos registos oficiais, era Domingos Alves; do povo é que recebera a alcunha de Cereijeiro, que tanto o irritava.
De temperamento rude e áspero, ele reagia sempre com energia e, às vezes, até com violência, quando aos seus ouvidos soasse aquele nome que, para si considerava tão insultuoso e ofensivo. Uma frase, gesto ou alusão a título para ele tão pejorativo, tinha logo da sua parte uma advertência, que era uma ameaça, em voz de falsete como regougo de raposa aluada.
- O amigo trate bem, querendo...
De espírito aventureiro e seguindo as instruções do livro de S. Cipriano, que ouvira ler, meteu-se, ele e outros, a escavar solo e fraguedos no vizinho monte da Cividade, à procura de decantado tesouro que uma “moura encantada” avaramente ali escondera. Nada encontraram do que ambicionavam e esperavam recolher; mas puseram a descoberto restos de um Castro Romano que abandonaram por não serem esses tesouros o motivo da sua busca.
Notava-se-lhe no nariz um pequeno desvio que, a imaginação popular atribuía ao diabo, quando uma noite o tentou raptar, chegando mesmo a arrasta-lo da cama em que dormia até à cozinha, por lhe ter rescindido um pacto que com ele tivera. Valeu à vítima ter lançado mão de uma caixa de lumes-prontos, que se encontrava em cima da lareira e, ao fazer lume, acendendo um, o diabo terá fugido espavorido.
Soube-se mais tarde que a coisa resultara dum violento impacto com o nariz na nuca doutro parceiro, que se erguia ao mesmo tempo que ele se baixava numa volta do “jogo do sapato”.
Decorridos anos –bastantes anos – o mesmo parceiro, dominado por um forte ataque de fúria etílica, vibrando violento murro no nariz do pobre homem, atenuou-lhe a mazela.
=.=
O caminho para Casais virava à esquerda no lugar de Chãos, na esquina do campo da Tia Maria Rosária, e afundava-se adiante, a dois saltos de lebre, na Melroeira. De ribas altas e coberto de urgeirais e silvedos densos, parecia um túnel. Nas rampas altas sobressaiam, aqui e ali, as fibrilhas que o desprendimento de terras deixava descobertas.
Na bifurcação, numa chãzinha de terra silicosa batida pelo trânsito e lisa como uma eira, os rapazes, na volta da escola, assentavam arraiais para as suas actividades lúdicas. Uma fita de musgo verde-negro e relva, que os dentes afiados das ovelhas da Ti Rosária, avidamente retouçavam, quando vadiavam por aqueles sítios, orlava os bordos da encruzilhada.
=.=
Duma vez que os rapazes ali estacionavam, ocuparam-se uns a observar a marcha lenta de um cárabo que vagarosamente atravessava o caminho; outros foram aos cogumelos eduis, que os havia na devesa do Martins, para os comerem depois de assados nas brasas com sal; finalmente outros ficaram em competições desportivas.
-Vamos à luta?
E formou-se logo um círculo a presenciar a sessão de luta "greco-romana" que ia seguir-se.
Eis que um dos lutadores, querendo sair vitorioso da competição, engancha uma perna na do adversário para o derrubar.
- Não vale enganchar!...Não vale enganchar!... - clamaram os circunstantes a bater com o punho da mão direita na palma da esquerda e aos saltinhos, a pé junto, nas pontas dos pés. Ao mesmo tempo, um que se arvorara em árbitro, destacava-se a endireitar os contendores.
- Ai o menino!... Assim não vale!...
=.=
O Zé da Ana Rita frequentava a 1ª classe. Era um menino sossegado, tímido e delicado. Trajava à maruja, de calção azul até meia perna e blusa da mesma cor com pala a recobrir os ombros, com debrum branco.
O Manuel Póvoas, buliçoso e folgazão, tentou arrastá-lo também para uma luta; mas ele recusou-se e ia resistindo até ao limite das suas forças. Assim desafiado e consumido, já desesperava, quando assomou à boca da Melroeira o Ti Domingos Cereijeiro que se dirigia açodado para o trabalho da tarde. De joanetes salientes e pernas cambas, vinha descalço e em mangas de camisa, arregaçadas.Trazia na mão esquerda um serrote com os dentes para cima, e no ombro direito um machado com o ferro sobre a omoplata e o cabo para a frente.
Ao avistá-lo, luziu na mente da pobre criança uma esperança de protecção amiga contra as impertinentes arremetidas do irrequieto condiscípulo. Confiado na eficácia do auxílio que implorava, bradou em voz alta
- Estás quedo?... Anda que vem acolá o Ti Domingos Cereijeiro e ele diz-te como é!...
Ó Céus!... O que ele foi dizer!..?!
O homem que ouvira à distância o aflitivo, mas para ele injurioso apelo, rompe furibundo na direcção dos dois e, quando o reclamante supunha, radiante em seu íntimo, que ia ser libertado e protegido, sentiu na cabeça o duro martelar do manípulo do serrote como severo castigo do imprudente apelo.
- Quem é o Cereijeiro?... Quem é o Cereijeiro?... - bradava ele indignado, enquanto batia desalmadamente na cabeça da indefesa criança, que inutilmente procurava defender-se com as mãos, da imprevista e brutal agressão.
E, depois de ter impiedosamente zurzido aquela cabeça, fez-se aos jarretes.
Entretanto porém, uma impertinente perturbação começava a atormentar-lhe o espírito. Acossado por uma pontinha de remorso que lhe ia bordejando a consciência, acusando-lhe a rudeza e iniquidade do castigo, ele magicava em solilóquio surdo, a tentar defender-se:
-Olha cá, agora!... Um fedelho a insultar um homem!...Eh!... como se eu fosse da igualha dele!...
Mas, dos abismos da sua alma, iam, ao mesmo tempo, emergindo peculiares complacências que lá estavam guardadas.
-E daí...sim...- ia ele caindo em si -talvez o rapaz não tenha dito aquilo por zombaria...- Pois não...não disse.- Ele diz o que ouve... -E, então, a culpa não é dele; é dos outros; dos que ensinam esses e outros erros às crianças. -Esses, sim; esses é que são, em verdade, os únicos culpados.
E a infeliz criança, que não quisera entrar na competição para onde o seu amigo o forçava, ficou estarrecido, com as lágrimas nos olhos, a apalpar os "galos " na cabeça, com os dedos das mãos, pisados, e arrependido da errada opção que fizera.

Rates, Julho de 1970
Joaquim D. Cancela

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Madrigal

Tu já tinhas um nome, e eu não sei

se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.

Nos meus versos chamar-te-ei amor.(...)

Eugénio de Andade



terça-feira, 20 de outubro de 2009

No Palácio de Catarina a Grande

rococó flamejante-obra de Bartolomeo Rastrelli



fotos de c.c.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Homenagem


GRITO de AMÁLIA

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

de vez em quando é preciso gritar


GRITO
de Munch


UIVO de Ginsberg

para Carl Solomon
-fragmento-

“ Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura,
morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca
de uma dose violenta de qualquer coisa,
"hipsters" com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contacto
celestial com o dínamo estrelado da maquinaria da noite,
que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando


sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos

sem água quente, flutuando sobre os tectos das cidades contemplando jazz,
que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram
anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados

das casas de cômodos,
que passaram por universidades com os olhos frios e radiantes
alucinando Arkansas e tragédias à luz de William Blake entre os estudiosos da guerra,

que foram expulsos das universidades por serem loucos e publicarem

odes obscenas nas janelas do crânio,
que se refugiaram em quartos de paredes de pintura descasca-
da em roupa de baixo queimando seu dinheiro em cestas de papel, escutando o Terror através da parede,
que foram detidos em suas barbas públicas voltando por Laredo

com um cinturão de marijuana para Nova York,
que comeram fogo em hotéis mal-pintados ou beberam tereben-
tina em Paradise Alley, morreram ou flagelaram [ ... ] ”.

sábado, 5 de setembro de 2009

Quinta das Lágrimas



fotografias de C.C.

(...)As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água, e o nome amores.(...)

Lusíadas, canto III

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Recordar Zé Afonso


foto de last.fm


Utopia
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

Zé Afonso

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Migalhas que ficaram III


fotografia de Mariano Pires


Ti-Zé da Delfina


A Sra. Delfina exercia a profissão de recoveira. Todos os dias lá ia ela pelo caminho de Coucelos, abaixo, para fugir às calmarias de sol das estradas e encurtar distancias, de canastra escurecida pelo uso, na cabeça, até à Póvoa de Varzim para trazer e levar recados e encomendas para quem precisasse dos seus préstimos. E muitos pretendentes eram eles, por não haver na freguesia loja de coisas, das principais coisas necessárias à economia doméstica. Era uma onça de chá para este, um arrátel de sabão para aquele, um quartilho de azeite para outro... Recados para lá, recados para cá.O meu Tio materno, José Ferreira Júnior, era o Professor Oficial (Professor Régio como dantes se dizia). Todos os dias só desjejuava, antes das aulas, bebendo chá, infuso, acompanhado com finas fatias de molete. Por isso a minha Tia Francisca que o era por duplo título – afim e consanguíneo – havia que ter sempre provida dessa especiaria a latinha de o guardar. Esse encargo se tornava leve por ter ali ao pé, mesmo em frente e à mão de semear, a pessoa que acertadamente lhe resolvia o problema. Era só chegar à janela e chamar, porque a frente da residência escolar dava, depois do caminho, para as traseiras da casa da vizinha.-“ Ó Delfina...Delfina, amanhã traz-me uma onça de chá. Os pequenos vão aí levar-te o dinheiro”.E a Sra. Delfina que ouvia o recado e o arruído das crianças em tropel pelo quintal abaixo, assomava à varanda de pau que para ali dava e recebia delas o dinheiro da encomenda.O seu homem, o sr. Oliveira, ocupava a sua actividade num modesto negócio de madeiras que amanhava por suas mãos. Comprava uma árvore, carvalho, sobreiro, castanheiro, cerejeira... Tirava dela tudo o que pudesse ser utilizado na confecção ou reparação de alfaias agrícolas: umas cambas ou uns miúlos para umas rodas, um eixo para um rodeiro, uma cheda para um carro, umas relhas para um arado, um tornadouro para uma grade, umas aduelas para um pipo, uma tábua para uma escudela... Tudo ali se encontrava. O que não desse obra, dava lenha para vender; e da miuçalha enchia uma caniçada para vender aos padeiros da Póvoa nas feiras que em todas as quartas e sábados de cada semana ali se realizavam.Como adjuvante tinha ainda um pequeno negócio de tabacos.A sua casa era térrea e torre, conforme o acidentado do terreno. Térrea para as traseiras onde se situava o quintal, e torre para a frente, à margem do caminho das Regueiras, em plano inferior ao da Escola. Por duas janelas abertas na fachada para o vale do Este, ameno e viçoso, entra o sol logo que nasce até se esconder por trás dos cómoros que lhe ficam para o ocidente. Do rio ouve os uivos temerosos quando é tormenta, ou os murmúrios suaves e harmoniosos quando é bonança. No muro que veda o quintal abre-se em frente da escola uma porta com padieira de granito. Entre as janelas tinha uma tabuleta, um rectângulo traçado a preto na superfície branca, em que se lia: -Tabacos – de José Oliveira – Habilitado. Era o estanque de tabacos, que a Sra. Delfina nas suas recovagens diárias também não se esquecia de abastecer.Em cima duma mesa, enegrecida e carunchosa, dentro da sala melhor, ao lado da janela, estavam os tabacos; uns pobres cigarros “Kentukys”, lumes–prontos, de pau e de cera, e rapé para cheirar.
Naquele tempo era vulgaríssimo o uso do rapé; e usavam um grande lenço vermelho com barras brancas, era o lenço tabaqueiro. O rapé em pó, tomava-se com as pontas dos dedos polegar e indicador duma caixa tabaqueira, ou aspirando o pó por uma cânula que se introduzia no nariz.
Quem pretendesse alguns desses artigos, batia à porta do coberto, um portal de duas empenas com aldrabas de batente, e era servido por uma cesta suspensa de um cordel, que descia da janela com a mercadoria desejada e subia com a paga.A Ti–Delfina morreu. E o Ti-Zé ficando só, vendeu a casa e foi morar em Casais, numa casinha cercada de altos muros, que a Silvina do Padre ali tinha herdado do seu tio Padre Manuel Rodrigues Ferreira.À noite, depois da ceia, ouvia-se na vizinhança declamar em alta voz. Se no outro dia lhe perguntassem se estivera doente, ou tivera visitas àquela hora, respondia que era ele a rezar. E observando-se-lhe que para isso, não era preciso tamanha berraria, concluía com ingénua, mas sincera convicção:-“Ah! Não que sim...Mas a reza em coro é mais aceite”E lá foi acabando os seus dias, carregando com uma volumosa hérnia inguinal a bambolear dentro da maneira das calças como alforge de pobre mal cheio.

Joaquim D. Cancela

domingo, 9 de agosto de 2009

As minhas histórias I


                                             Érasme Quellin-retrato de menina
                                                 (museu Groeninge, Bruges)



O grão de milho
No fim de tarde de um Outono quente o milho estendia-se na eira a secar, mas, para não apanhar o relento da noite, arrecadava-se para o varandão ou, depois de junto no meio da eira, cobria-se com panais de linho.
Nesse dia, era essa a tarefa da Ana, enquanto eu no outro canto da eira brincava a encher os ouvidos de grãos de milho para experimentar a sensação de não ouvir. Mas não conseguia.
-
Chame por mim, a ver se ouço!...Tantas vezes isto se repetiu que, a Ana veio ver, o que se estava a passar.
-
Oh menina!... Qu’está a fazer?!
O pânico apoderou-se da cara dela; a aflição foi tanta que logo me convenci que o disparate era grande. De imediato me esvaziou os ouvidos mas, um grão teimou em não sair.
-
E agora?
-Vou ter que dizer à Senhora.
- Para que fez isso?
-E agora, se não sai?
Nesse atropelo de perguntas sem respostas, a ansiedade começou a apoderar-se de mim.
-
Oh minha senhora , a menina tem um “graeiro” de milho no ouvido!...A Mãe olhou e pareceu-lhe que o meu Pai resolveria o problema.
Foi-se acender o candeeiro de petróleo, o maior.
Estávamos em plena guerra mundial, com racionamento e a aquisição de petróleo, assim como os artigos de mercearia era feita por meio de senhas. Beneficiávamos da dispensa de algumas senhas por parte de pessoas que, não as utilizando, as cediam por razões económicas ou culturais.
Mas mesmo assim, faziam-se muitas economias. À mesa usava-se com frequência o candeeiro de azeite de três bicos; porque os candeeiros de petróleo seriam para se escrever ou ler. Mas também havia o candeeiro grande na sala de visitas; e foi esse que se acendeu.
O meu Pai estava sério; não o recordo zangado, mas apreensivo. Muniu-se de uma pinça que desinfectou com aguardente de casa, e depois de várias tentativas sem nada conseguir, concluiu:
-
Tem de se ir amanhã à Póvoa.
A Mãe suspirou com os seus habituais: - ai, ai!...
No dia seguinte, logo pela manhã fui à Póvoa de Varzim com a Mãe e dirigimo-nos à farmácia Lemos. O farmacêutico era nosso conhecido e era uma pessoa simpática e calma. Com um instrumento, que hoje sei tratar-se de uma cureta, tentou arrastá-lo, mas acabou por desistir.
-
Não é possível. Quanto mais tento, mais o enterro; é melhor ir ao médico.
-Vamos ao Dr. Vieira Trocado.
Agora é que o pânico se apoderou verdadeiramente de mim. Era o médico lá de casa para as coisas mais complicadas. Sim, porque o médico que frequentava a nossa casa era o Dr. João Alves, conhecido entre nós pelo Dr. de Macieira; grande fumador e jogador de damas. Era bom médico, inteligente, mas dada a amizade e confiança que existia entre nós, quando a situação parecesse mais preocupante, o meu Pai recorria ao Dr. Vieira Trocado.
Não gostava dele. Tinha uma expressão  de pessoa incomodada.
Entramos para a sala de tratamentos.
Nem um sorriso!
O tabuleiro do material cirúrgico exibia uma panóplia de ferros, assustadora.

Não me vai esburacar com aquela ferraria toda”.
“Eu grito” .
Estas frases rolavam no meu pensamento.
A minha cabeça começou a latejar. A Mãe, contrariada, lá me imobilizou conforme as indicações do médico, mas de nada valeu.
Gritei, pontapeei, mordi, de tal forma que, a minha Mãe, ela própria, ordenou que parasse. O médico, mal humorado, repreendeu-a pela incapacidade  de me manter submissa e calada.
-
Sendo assim, terá que ir ao Porto a um cirurgião; talvez com anestesia...
Entregou um cartão com o nome que ele recomendava.
A Mãe, no entanto, foi-se aconselhar com o meu tio António, irmão dela,  que vivia na Póvoa.
-
Antes disso vai ao Dr. Sampaio de Araújo.
O Dr. Sampaio de Araújo era um médico recentemente formado e que gozava de muita credibilidade, sobretudo tratando-se de crianças. O meu tio não se cansou de o elogiar. E  lá fomos!
O consultório era na residência. Entramos e aguardamos numa sala com  uma marquesa ao centro.
Sentia-me perdida. Nunca o tinha visto.
"
Como seria agora?"
De repente, entra na sala um homem alto, que compreendi de imediato ser o médico, a rir-se e num ápice, sinto-me a pairar no ar e logo em seguida sentada em cima da marquesa.
-
Então o que é que esta menina tão bonita andou a fazer?
-Sabes? Vamos fazer uma partida a esse “milheiro”.
-Vamos dar-lhe uma "mangueirada" e tu vais ver como ele salta cá para fora. Queres ver?
Senti que tinha ali um aliado. Enquanto isso, a empregada preparava a água acidulada bem como os apetrechos necessários.
E  sem me aperceber o que se passou...
-
Já está.
O grão de milho saltava no fundo da cuvete.
Não sei se ri, se chorei; a alegria era enorme!...
Mais tarde, proporcionou-se frequentar a casa dele.
Ele lembrava-se da menina do grão de milho.
Eu nunca o esqueci.


 C C
(fotografia de Mariano Pires
)

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sábado, 8 de agosto de 2009

reflexo em Sta. Maria do Bouro


fotografia de Mariano Pires

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Migalhas que ficaram II


A MINHA ESCOLA

A minha primeira escola – minha e de todas as gerações que por ali passaram, antes e depois de mim – gravou no meu espírito, profundas impressões que o tempo por largo que seja não conseguirá destruir ou apagar.
Foi nela que aprendi a pronunciar as primeiras letras, a ler as palavras, as frases, os trechos, e com a leitura, o seu significado e sentido; foi nela que exercitei o traçado de riscos até à escrita completa dos fonemas e vocábulos como expressão dos pensamentos e ideias, ou o desenho como representação ideio gráfica das coisas. Foi ela que me imprimiu a ideia do dever, e as normas da moral e do civismo.
E, de tanto ali andar e desandar, por dentro, nas horas de estudo, e por fora, nos intervalos de recreio e folga, podendo-se dizer que nenhum espaço ou canto ficou sem a minha presença, - e de tanto ali andar e desandar, dizia, e com elas me familiarizar, a cada tábua e a cada pedra, como a cada sítio e a cada coisa, ficou presa minha alma duma indelével e saudosa recordação.
Se abrangermos, como é, na Escola a trilogia – edifício, professor e alunos – então a alma tem de transcender da recordação das coisas que nos são queridas, para a gratidão respeitosa de quem, pelo exemplo que infundia e ensinamentos que dava, formou e alicerçou a personalidade de cada um de nós.
.=.
A escola fica situada na encosta das Pedregulhas à margem do caminho da igreja.
Na sua frente, depois da casa do Ti-Zé da Delfina que lhe fica a seguir para baixo, estende-se a várzea viçosa de milharais e vinhedos; e mais alem, para nascente, a graciosa encosta do monte de Casais com o denso casario alcandorado entre tufos de verdura e flores, parecendo que todas as janelas sorriem para ela a espreitar por entre a folhagem.
Também o sol ao despontar, enfia por entre frondoso arvoredo de freixos e salgueiros e vai acariciá-la e afagá-la a esparrinhar raios de luz e calor, para a iluminar e aquecer como ela ilumina e aquece os corações das gerações infantis que por ali passam.
Sempre “risonha e franca”, ela lá está, donairosa e acolhedora, a dardejar luz na inteligência das crianças que dela se acercam.
.=.
A escola é do tipo indeterminado. Foi, contudo, expressamente construída para isso e oferecida pelo benemérito José da Silva Arcos que para o Brasil havia ido ainda novo.
Para comemorar o seu rasgo generoso e lembrar a todos, o autor ilustre que o cometera, fixaram uma placa com o seu nome na padieira da porta da entrada. E na sala, por trás e por cima da cadeira do Professor, dois retratos de cor sépia – um dele e outro de sua mulher – assinalavam o reconhecimento de todos quantos iam aurir ali os benefícios da sua acção benfazeja.
.=.
A sala tinha apenas duas janelas na ala direita. No seu intervalo, um quadro preto de ardósia. O lugar não era apropriado; mas como poucos exercícios se faziam nele, tolerava-se a colocação imprópria.
Por cima, espetado na parede, em direcção oblíqua, um pequeno tubo servia de apoio nos tempos passados `a bandeira usada nas célebres “sabatinas”, entre dois grupos em que as classes se dividiam. No lado oposto outro tubo, na mesma posição, assegurava a posse da bandeira quando a turma desse lado fosse a vencedora.
As escolas eram raras, excessivamente lotadas, por isso, era exigido ao professor o uso de métodos e processos que garantissem quanto possível o bom êxito do trabalho e esforços dispendidos. Os meios mais adoptados eram os “monitores” e as “sabatinas”que consistiam no debate colectivo de determinadas matérias dos programas entre os dois grupos rivais.
Ao fundo estava uma mesa grande com dois bancos, um à frente e outro atrás encostado ao biombo que separava a sala de aula do vestiário. Por cima, um relógio de parede, marcava no movimento sincrónico do pêndulo, o tempo daquele odioso cativeiro para uns, e de espiritualidade e prazer para outros.
.=.
Entrei ali pela primeira vez há muitos anos. Nem sei quantos. Acompanhado pelos meus irmãos mais velhos, Manuel e José, lá fui. Subi a escada de pedra que lhe dá acesso e entrei. Depositados os chapéus à entrada do corredor que servia de vestiário, devia ter ido como os outros, pedir a “bênção ao mestre”. Do que se passou em seguida a minha memoria nada regista. Essa faculdade privilegiada ficou a Trindade Coelho. Mas, como ele, eu também devia ter sido a “encomendinha”.
Os que entravam pela primeira vez, iam, depois dos cumprimentos regulamentares, sentar-se no banco de trás. Era por ali que se iniciava a carreira escolar. Os lugares iam sendo ocupados gradualmente depois, segundo o desenvolvimento escolar de cada um, até ao último da esquerda da última coxia de carteiras. Eram os lugares dos que sabiam mais, dos que atingiam o mais alto grau escolar. Também lá estive, nesse lugar cimeiro. Com alguns companheiros subi a ladeira íngreme do curso. Ultrapassando-os empoleirei-me na grimpa, termo daquela por onde se subia de harmonia com o aproveitamento escolar e, lá permaneci até me despacharem para outra parte. Sim, porque enquanto éramos “encomendinha”, éramos despachados conforme o destino que nos queriam dar.


Joaquim D. Cancela

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Que música escutas tão atentamente


fotografia de Mariano Pires


Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.



Eugénio de Andrade
(Coração do dia)

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Migalhas que ficaram I

A primeira página deste blog, é uma pequena homenagem ao meu Pai, Joaquim Domingues Cancela, publicando um dos vários contos que ele escreveu. Neste caso, foi premiado com o 2º Prémio em "Conto" nos IX jogos Florais da "Escola Remoçada" de Braga em 1969.
Seguir-se-ão outros, sob o título " Migalhas que ficaram", designação dada por ele ao conjunto de histórias que escreveu na recolha de episódios e personagens que a sua memória guardou.
O local onde estas histórias se desenrolam, é S. Miguel de Arcos, concelho de Vila do Conde.
Também colaborarei com as minhas, que também já tenho guardadas.
Amenizarei a tarefa com textos de autores da minha preferência, e música, sempre.


O cão do Carreira

O MEDO DE UM CÃO QUE METIA MEDO


Era feroz o animal. O ladrar parecia o bramido da tempestade. Cavo e profundo como o urro do leão. Não latia nem gania; mas ladrava, sempre furioso e ameaçador. De musculatura forte e vigorosa, ele arremetia sempre, provocado ou não. O pêlo era pedrês e da cor-do-monte; a boca amplamente rasgada, de rebordos pretos, tinha um instinto altivo e indomável.

Entre os rapazes da escola e ele, abria-se um profundo fosso de difícil reconciliação; por isso, quando se encontravam, travava-se entre eles feroz e renhida luta. O campo de batalha era o largo fronteiro à casa de habitação – o Largo das Oliveiras.

Os rapazes desciam no fim da aula a rampa da escola dali ao pé. Se o portal estava aberto, ali os esperava o molosso, preso a grossa corrente; ou, se então vagueava pelo eirado ou quintal, lá vinha atraído pela algazarra, decidido a enfrentar todos os ataques que à pedrada lhe dirigia a irrequieta falange infantil.

A sua posição era sempre dentro do ângulo formado pela fachada da casa e um muro perpendicular na direcção do poente. Ali se entrincheirava sempre, embora em situação desfavorável.

Os rapazes, em linha de combate, estendiam-se em hemiciclo a fechar o ângulo, ao largo. As munições tinham-se ali em abundância – cascalho e rebos dispersos pelo chão, a topar nos pés, e arrumados aos lados do recinto.

O ataque, quando andava livre, tinha de ser cerrado e contínuo, porque se esmorecesse, o inimigo avançava e, ultrapassando a terra de ninguém, invadia a linha adversária e começaria a chinchar fartamente aquelas carnes tenras.

As pedras voavam pelo ar e caíam no recinto como grossas gotas de chuva em vésperas de aguaceiro. No meio daquele apedrejamento, o cão ladrava e corria de um lado para o outro atrás dos calhaus maiores a tentar sopesá-los com os dentes. E, furioso, mordia-os.

O fragor da luta ouvia-se ao largo; e o combate só terminava quando o vinham recolher e fechar a porta, por haver chegado até lá dentro o alarido do cão e dos rapazes.
...
No dia da vessada do campo da Castanheira, também lá estava. De madrugada para lá foram. E enquanto descarregavam as apeirias, jungiam o gado e arrumavam ferramentas, ele passou uma revista ao campo: cheirou as umbreiras da cancela e alçou a perna contra uma, examinou os buracos das paredes, farejou os pés das uveiras e foi aninhar-se, depois, debaixo do carro.
Antes, porém, de se alojar, redemoinhou no lugar escolhido umas duas ou três voltas e alapou-se depois. Enroscou-se, apoiou o focinho no vazio direito e começou a dormitar. De quando em quando, estremecia e abria um olho a espreitar por baixo de uma orelha.
...
Manhã alta. O sol esplendente já esfuziava há muito por entre a ramaria das matas a tingir de finas aguarelas a paisagem e as folhas aveludadas dos pâmpanos. Por toda a campina retumbe uma maviosa sinfonia de vozes, em coro, das cigarras e dos grilos, dos pimpalhões e das rolas, dos zéfiros e do homem.

Para não cair em modorra pelo cansaço e pelo calor, o homem afouta o gado:
“Ei, Cabano!... Ei!... lá, anda!... Vai lá fora, vai!... Ei!...”
E para contentar o Caroucho que também queria ser afoutado e ouvir o seu nome repercutido na quebrada dos cerros e na lonjura dos vales:
“Vamos lá, Caroucho!... Anda lá, anda!... Ei!...”
Ou, então, lançando o braço por cima da cernelha a afagá-los:
Então?!...Vamos lá fora, vamos!... Ei!...
E os bois pachorrentos, todos anchos, lá vão, jungidos ao cambão, puxando pacientemente o vessadouro a virar as leivas húmidas que, aquecidas pelo sol acariciador da manhã, ressuam vapores diáfanos e leves a subirem ao céu.

A equipagem, que viera na sua maior força, lá anda ocupada nas lides da sementeira. Só o cão dormita. Contudo, de orelhas espetadas, ele pressente os pequenos ruídos, por pequenos que sejam, e, de narinas ao léu, fareja o ar.
...
Os rapazes, em numeroso magote, seguiam a caminho da escola, tranquilos e despreocupados, em marcha lúdica. Corre um para a direita, atravessa outro para a esquerda, persegue este, foge aquele, numa confusão de vozes, porque todos simultaneamente falam, gritam e riem. Nem um sinal de tristeza; só alegria e risos.

Mas o ambiente de luz e gargalhadas, que naquele momento imperava neste lanço da estrada, depressa se ia transformar em confusão aterradora, de desespero e medo.

A caravana vai a passar em frente da rampa que, entre a capela do Senhor dos Desamparados e a casa do Padre Manuel, acede ao campo da Castanheira.

Então, ante a algazarra, o lebréu desperta: fareja e ouve. E, num abrupto rompão a ladrar, ataca furiosamente. Encarniçadamente. Num ápice, sobe a ladeira e persegue na estrada os pobres rapazes que, ao ouvi-lo, largaram em ansiada gritaria, a fugir a toda a brida. De chapéu na mão, para os não perderem, aterrorizados, correm quanto podem.

Meu irmão José era o último do rancho em debandada. Entre ele e o cão já só havia o espaço dum pequeno salto de boieira. Embora denodadamente se empenhasse na fuga, não conseguia evitar de ser alcançado. Uma enorme aflição o dominava porque, sentindo a proximidade do inimigo, já adivinhava os dolorosos rasgões da sua carne produzidos pelos dentes afiados do feroz canino. Um atacava com fúria, o outro com desespero fugia.
Ia ser agora o ajuste de contas!...” – pensava ele.
Aquelas pedradas com que tantas vezes fora atingido junto da entrada do seu posto de vigia e guarda, iam ser pagas com umas chinchas bem dadas nas bochechas do primeiro que alcançasse. E o primeiro ia ser ele”.
Naquele momento era o caos, o terror, a mortificação!....
Ia ser espezinhado, esgatanhado, mordido, estrancinhado...- eu sei lá!... – comido até! Aquele canzarrão, maior do que ele, mais corpulento, mais forte, assim furioso, até o comia!... Um horror!...”
Estes pensamentos tumultuavam, como meteoros, na mente da aflita criança. E corria quanto podia, a gritar.
Nisto, um tropeção brusco, a culminar o desespero, prostra-o no macadame da estrada, como um sapo.
Pronto!...Não foi preciso mais nada. O animal que arremetia raivosamente em vertiginosa correria, parou de repente, como se automaticamente uma mola o travasse, e retrocedeu.

Com o rabo caído e de orelhas derrubadas, ele foge humildemente a olhar para trás de quando em quando, como quem receia que o venham responsabilizar por aquela queda desastrosa que os seus olhos acabavam de presenciar.

E, ao desquinar à casa do Padre para se agachar no seu ninho debaixo do carro, ainda volveu um olhar receoso e tímido para se certificar de que não iam atrás dele tomar-lhe contas pelo desastre ocorrido de que se sentia o único responsável.
Ele que tanto medo havia metido, também ele, foge agora e ... cheio de medo.

Joaquim D. Cancela