domingo, 9 de agosto de 2009

As minhas histórias I


                                             Érasme Quellin-retrato de menina
                                                 (museu Groeninge, Bruges)



O grão de milho
No fim de tarde de um Outono quente o milho estendia-se na eira a secar, mas, para não apanhar o relento da noite, arrecadava-se para o varandão ou, depois de junto no meio da eira, cobria-se com panais de linho.
Nesse dia, era essa a tarefa da Ana, enquanto eu no outro canto da eira brincava a encher os ouvidos de grãos de milho para experimentar a sensação de não ouvir. Mas não conseguia.
-
Chame por mim, a ver se ouço!...Tantas vezes isto se repetiu que, a Ana veio ver, o que se estava a passar.
-
Oh menina!... Qu’está a fazer?!
O pânico apoderou-se da cara dela; a aflição foi tanta que logo me convenci que o disparate era grande. De imediato me esvaziou os ouvidos mas, um grão teimou em não sair.
-
E agora?
-Vou ter que dizer à Senhora.
- Para que fez isso?
-E agora, se não sai?
Nesse atropelo de perguntas sem respostas, a ansiedade começou a apoderar-se de mim.
-
Oh minha senhora , a menina tem um “graeiro” de milho no ouvido!...A Mãe olhou e pareceu-lhe que o meu Pai resolveria o problema.
Foi-se acender o candeeiro de petróleo, o maior.
Estávamos em plena guerra mundial, com racionamento e a aquisição de petróleo, assim como os artigos de mercearia era feita por meio de senhas. Beneficiávamos da dispensa de algumas senhas por parte de pessoas que, não as utilizando, as cediam por razões económicas ou culturais.
Mas mesmo assim, faziam-se muitas economias. À mesa usava-se com frequência o candeeiro de azeite de três bicos; porque os candeeiros de petróleo seriam para se escrever ou ler. Mas também havia o candeeiro grande na sala de visitas; e foi esse que se acendeu.
O meu Pai estava sério; não o recordo zangado, mas apreensivo. Muniu-se de uma pinça que desinfectou com aguardente de casa, e depois de várias tentativas sem nada conseguir, concluiu:
-
Tem de se ir amanhã à Póvoa.
A Mãe suspirou com os seus habituais: - ai, ai!...
No dia seguinte, logo pela manhã fui à Póvoa de Varzim com a Mãe e dirigimo-nos à farmácia Lemos. O farmacêutico era nosso conhecido e era uma pessoa simpática e calma. Com um instrumento, que hoje sei tratar-se de uma cureta, tentou arrastá-lo, mas acabou por desistir.
-
Não é possível. Quanto mais tento, mais o enterro; é melhor ir ao médico.
-Vamos ao Dr. Vieira Trocado.
Agora é que o pânico se apoderou verdadeiramente de mim. Era o médico lá de casa para as coisas mais complicadas. Sim, porque o médico que frequentava a nossa casa era o Dr. João Alves, conhecido entre nós pelo Dr. de Macieira; grande fumador e jogador de damas. Era bom médico, inteligente, mas dada a amizade e confiança que existia entre nós, quando a situação parecesse mais preocupante, o meu Pai recorria ao Dr. Vieira Trocado.
Não gostava dele. Tinha uma expressão  de pessoa incomodada.
Entramos para a sala de tratamentos.
Nem um sorriso!
O tabuleiro do material cirúrgico exibia uma panóplia de ferros, assustadora.

Não me vai esburacar com aquela ferraria toda”.
“Eu grito” .
Estas frases rolavam no meu pensamento.
A minha cabeça começou a latejar. A Mãe, contrariada, lá me imobilizou conforme as indicações do médico, mas de nada valeu.
Gritei, pontapeei, mordi, de tal forma que, a minha Mãe, ela própria, ordenou que parasse. O médico, mal humorado, repreendeu-a pela incapacidade  de me manter submissa e calada.
-
Sendo assim, terá que ir ao Porto a um cirurgião; talvez com anestesia...
Entregou um cartão com o nome que ele recomendava.
A Mãe, no entanto, foi-se aconselhar com o meu tio António, irmão dela,  que vivia na Póvoa.
-
Antes disso vai ao Dr. Sampaio de Araújo.
O Dr. Sampaio de Araújo era um médico recentemente formado e que gozava de muita credibilidade, sobretudo tratando-se de crianças. O meu tio não se cansou de o elogiar. E  lá fomos!
O consultório era na residência. Entramos e aguardamos numa sala com  uma marquesa ao centro.
Sentia-me perdida. Nunca o tinha visto.
"
Como seria agora?"
De repente, entra na sala um homem alto, que compreendi de imediato ser o médico, a rir-se e num ápice, sinto-me a pairar no ar e logo em seguida sentada em cima da marquesa.
-
Então o que é que esta menina tão bonita andou a fazer?
-Sabes? Vamos fazer uma partida a esse “milheiro”.
-Vamos dar-lhe uma "mangueirada" e tu vais ver como ele salta cá para fora. Queres ver?
Senti que tinha ali um aliado. Enquanto isso, a empregada preparava a água acidulada bem como os apetrechos necessários.
E  sem me aperceber o que se passou...
-
Já está.
O grão de milho saltava no fundo da cuvete.
Não sei se ri, se chorei; a alegria era enorme!...
Mais tarde, proporcionou-se frequentar a casa dele.
Ele lembrava-se da menina do grão de milho.
Eu nunca o esqueci.


 C C
(fotografia de Mariano Pires
)

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