terça-feira, 13 de abril de 2010

novo livro




O MIÚDO QUE PREGAVA PREGOS NUMA TÁBUA
(excertos)

cap. 24

É possível que alguns leitores se interroguem sobre o que é, ao fim e ao cabo, este livro, e qual a sua relação, se alguma existe, com a literatura. Para dizer a verdade, não sei. Mas o miúdo que pregava pregos numa tábua, ou talvez o autor, quem sabe se eu próprio, já uma vez escreveu que, para ele, a poesia está aquém e além da literatura. E até confessou que de literatura pouco ou nada sabe. Mas sabe de um rio e de uma ria ou, se preferirem, sabe dos rios e dos mares e da influência da lua nas correntes e nas marés e, ao que parece, no fluxo do sangue, sabe do voo e do grito da narceja, que é um alerta e, ao mesmo tempo, um viva à liberdade. E sabe da respiração da terra, que essa, sim, tem a ver com o ritmo e respiração da escrita. Num certo sentido já fez essa respiração boca a boca quando, na Nicarágua, acompanhado pelo poeta Fernando Silva, que se dizia descendente de portugueses, se sentou no rebordo da cratera do vulcão Santiago e sentiu o bafo que ritmadamente saía das entranhas da terra.
- Parece um boi a respirar - disse o poeta nicaraguense.(...)

cap. 30

- Parece que está a falar com Deus - suspira o da Cancela, depois de ouvir o Concerto nº5 de Beethoven.
- Não acho - diz o miúdo que olhava as águas do rio -, não sei se alguém fala com Deus ou se Deus é apenas um quê, assim mesmo, um quê sem ponto de interrogação. Seja como for, se alguém fala com esse mistério é Bach, porque talvez o Quê, agora com maiúscula, seja uma sequência matemática, um número lá no meio ou no fim, e isso é a música de Bach, uma interrogação contínua, uma equação a uma infinidade de incógnitas. Mas talvez não só Bach, talvez por vezes, o flamenco, quando a voz do homem ou da mulher parece vir do fundo da terra, ou quando na guitarra os dedos tocam uma sequência parecida com Bach. E Amália. E também certos poemas. Poucos.
- Devias escrever isso.
- É o que estou a fazer.

Manuel Alegre

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Lido de uma só respiração, este livro, é um poema feito em prosa.

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