segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Migalhas que ficaram VIII

foto de Mariano Pires



Uma Pescaria no Rio Este




Os milhos já tinham saído dos campos. Os estrepes lá estavam aguçados a atestar uma boa colheita e a dilacerar algum pé de quem se afoitasse a andar por ali descalço. As borboletas esvoaçavam febrilmente, irisadas pelo sol outonal, pousando num montículo ou numa folha verde, a chupar em sorvo guloso, o néctar delicioso que as regalava. Uma vaca solitária, pacificamente deambulava por aqueles sítios, a pastar as folhas secas que se tinham desprendido das canas recolhidas. No rio, os peixes vogavam pausadamente, ou até paravam aos cardumes, formados em linha de costado ou de frente.
E os rapazes da Escola, na ida e na volta, em cima da Pinguela* ou debruçados no parapeito da margem esquerda para montante, ali ficavam, embevecidos, a admirar aquela fauna aquática que tanto os maravilhava. Viam-nos pairar mansamente e sentiam um desejo imenso de os pescar, de os ter nas suas mãos, de apalpar as suas escamas, lisas e escorregadias, de sentir nos dedos o latejar angustiado do seu ventre, o arfar ansioso das guelras, o palpitar agitado do coração aflito.
Deitavam migalhas de pão na água para os verem agitar-se em cardumes na disputa do apetitoso manjar. De súbito, surgia uma truta arisca a cruzar-se vertiginosamente nas águas, como um sarrisco; levava outro destino: a caça de algum insecto que bruxuleava à superfície.
Aquela ideia dos rapazes, tão obsessora, tão afincada de os pescar, não os largava. Apoquentava-os. E, quando passavam junto do rio, ou na Pinguela, assumia então proporções incalculáveis.
Se pudessem apanhá-los à mão, até se atirariam à água!
Apresentavam planos, comentavam.
- Eu tenho uma cana da Índia - dizia um.
- E a linha e o anzol?
- Cinco reis dão três - acrescentava outro.
Debatidos os planos e as possibilidades de os realizar, e impelidos por uma indomável força de vontade que impiedosamente os dominava, lá foram adquirindo os apetrechos necessários à obra que com tanto afinco arquitectavam. E, quando todo o equipamento apropriado estava reunido, sem esquecer a caixa das minhocas para as iscas, parecia que a alegria lhes faiscava nos olhos arregalados que, reflectiam o entusiasmo e alvoroço que lhes ia na alma.
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Naquele dia as lições nada deixaram na memória porque, o seu espírito, o sacudia um estrepitoso turbilhão de pensamentos à volta do que iria ser aquela tão desejada pescaria.
Aquilo é que ia ser!
Os peixes, em cardumes à volta do anzol que a isca encobria, febrilmente a debicá-la!...
E esfregavam as mãos e pinchavam em explosões de contentamento.
E quando um, mais guloso e arrojado, engolisse o engodo que lhe ofereciam no anzol ! ?...
Lá viria ele içado na linha!...
Aquilo é que ia ser !...
E, mal se apanharam fora da porta da Escola, abalaram como setas por ali fora até ao ponto previamente escolhido. Uns seriam os actores, munidos de cana, linha, anzol. Os outros seriam os espectadores, a compartilhar das mesmas sensações e anseios dos primeiros.

.+.

A linha foi lançada. Um anzol caiu na água remansada e um pequeno chumbo adrede ligado à linha fê-lo mergulhar.
Espalhou-se, então, na fundura das águas o aroma do saboroso petisco.
Um eirogo lambareiro farejou a isca. Incitado pelo apetite que ela lhe despertara, saiu do esconderijo na toca de uma cepa de salgueiro e dirigiu-se por entre as poldras do fundo para ali.
O pescador, cá de cima, observava-lhe os movimentos. As fontes a latejar e o coração apertado, comprimido, ia pulsando a custo. Parecia que abafava.
Um louva-a-deus a cofiar as mandíbulas, pousado numa folha de amieiro contemplava a cena a olhar de soslaio pelo lado esquerdo.
O peixe abriu a boca e engoliu a isca. Fez um oco na cervis. Engoliu mais fundo para desprender o pitéu e sentiu no gasganete uma picada do anzol, mas não desistiu. Retesou os músculos e enrolou-se numa pedra para se firmar e não deixar escapar a presa apetitosa.
O pescador, nervosamente atento, nem respirava; e, pressentindo uma ligeira pressão na cana e vendo-o a colear-se e a querer apoderar-se melhor do manjar, monologou com os seus botões:
- É agora!
E zás, dá um puxão violento. Mas, quando contava ver a enguia a contorcer-se no ar enganchada pelas guelras, presenciou, desolado, uma bola de chumbo na extremidade da linha a baloiçar no espaço.
A linha quebrara. E o louva-a-deus que presenciara a cena a olhar de nesga, fez uma figa por despedida, e agitando as asas a brilhar ao sol, dourado desse dia, foi pousar no cucuruto frondoso dum freixo da margem oposta.
Os outros estavam radiantes. Haviam pescado três peixes que enfiaram pelas câmaras branquiais numa gancha de salgueiro cortada ad hoc.
Neste momento, o Zeferino Martins atravessava a Pinguela e dirigia-se sorridente e alegre para o grupo. Vinha descalço e em mangas de camisa arregaçadas, e, na cabeça um chapéu de palha de copa afunilada e aba larga, muito em uso nas estações quentes.
Trazia adjungido à mão, por um atilho, um pequeno carro de duas rodas, cabeçalha e foeiros, miniatura de carro de lavoura, e mostrou-se desejoso de transportar nele a peixaria acabada de pescar.
Feita a carga o carro ficou cheio. Três peixes do tamanho de dedos, encheram o carro. E lá seguiram alegremente...

Rates ( escrito nos anos 60)
Joaquim D. Cancela


*Pinguela-nome da ponte onde a cena se passou

domingo, 27 de fevereiro de 2011

LE Poème électronique

A peça "Poème électronique", de Edgar Varèse é, como o próprio compositor a caracterizou, uma simples colagem de sons.

Mais tarde, Le Corbusier concebeu a escultura "Le Poème Électronique", inspirada na estrutura da composição de Varèse.



sábado, 26 de fevereiro de 2011

Não

Não devia ser permitido
que os bébés se "constipassem"... tossissem...chorassem...

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

POESIA

Leça

O meu cansaço
é um barco velho
que apodrece
na praia deserta

Fernando Pessoa

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Nós éramos assim

Maria da Conceição Cancela, Maria Cândida Sá, Maria da Graça Arantes


Da Rosa Wandscheneider Sousa, recebi via facebook, esta foto que desconhecia, e que data de 1961 no dia do casamento da Maria Cândida Sá, depois Wandschneider.
Fomos as três amigas inseparáveis durante o curso na Faculdade de Medicina do Porto.
A vida profissional separou-nos, mas os encontros foram-se sucedendo com maior ou menor proximidade.
Nos últimos anos, a aproximação foi maior. Circunstancias várias o facilitaram e por último, a reforma.
Foram conversas sobre livros, Lobo Antunes pois claro, o preferido da Graça, que invariavelmente me aconselhava a repetir a leitura, porque dizia serem" livros com avesso"; os concertos, a minha paixão; exposições, viagens, a maioria das vezes a ficarem em projectos....
Durou pouco esse tempo!
A Graça, sem nos avisar, deixou-nos...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Passeio no Parque



Parque da cidade
fotos de TM

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

sábado, 5 de fevereiro de 2011

POESIA

in Dias com Árvores

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo comigo
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe porque ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro

Guardador de Rebanhos