terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Publicado no Art&manha

Concursos (de pequenino se torce o pepino)

3 junho 2007

Aconteceu a semana passada em Vila do Conde. Concurso de piano e violoncelo Marília Rocha.
Assisti à prova do dia 31, de piano, para crianças até 9 anos, na minha qualidade de reformada e com tempo para isso. Não sou profissional de música, tive um ensino rudimentar de violino nos anos 40/50, onde isso vai ………mas sou uma ouvinte muito atenta; e graças a Deus e graças à Gulbenkian tenho ouvido coisas muito boas. Haja em vista a programação com que ela nos presenteou este ano!
Pois muito bem, alegres e desenvoltas as crianças lá foram tocando, duas peças à escolha e uma imposta (Eu sou um coelhinho de Helder Gonçálves).
Quando tudo ia bem, levanta-se uma concorrente sentada na primeira fila, diferente das outras.
Cabelinho “escalado”, roupa muito alinhadinha, a condizer, postura aparentemente serena e veio-me à memória, a menina de outros tempos de fitas de veludo no cabelo a apanhar caracóis, sapato de verniz, vestido armado de organza; esta, era a edição moderna desse modelo.
E não é que tocava Chopin?!
Os dedos ágeis, a memória fresca (não houve brancas) mas, onde estava Chopin?
Será possível, até 9 anos, entender Chopin? Mas Chopin não escreveu para crianças! Coitado do Chopin, já lhe vimos atribuir concertos de violino pelo representante da Cultura deste nosso País, mas assassiná-lo deliberadamente com apoio e consentimento de responsáveis é bastante pior.
O intérprete, interpreta. Quem interpreta precisa de saber o quê, logo tem que entender; depois de entender tem de transmitir aos outros.
Mexi-me na cadeira algumas vezes, enquanto a criança tocava, ansiosa que ela terminasse. Desejei que ela tivesse uma branca e parasse ali.
Não se deveria aceitar programação fora de uma escrita adequada à idade. Até aos 9 anos a vivência que Chopin exige ainda está para vir. Começará em alguns casos na adolescência. De que estavam à espera, de um prodígio? Os prodígios contradizem o que eu estou a dizer, criam a sua identidade, estão fora da escala, por isso mandam à merda concursos destes. Esta menina não foi o que fez.
Ouvi crianças a tocar o Coelhinho com enorme sabedoria porque a música lhes dizia alguma coisa; uma delas fez um pianíssimo no final depois de um desenvolvimento saltitante, que não se pode esquecer.
Ouvi um Bartok admiravelmente arrogante e impetuoso; Mozart, livre, rebelde, irrequieto.
Estas crianças entendiam o que estavam a fazer.
No dia seguinte, fui ao concerto dos laureados, e a tal menina lá estava outra vez porque foi a escolhida.
Senhores Jurados, rompam com este atavismo cego, neste caso surdo, de premiar quem vem empurrado por “quem”.
Olhem e ouçam os anónimos como algumas daquelas crianças que tocavam tão bem, cientes e compenetradas mas que não tiveram quem as “empurrasse”. E depois foram todas, as que “sobraram”, metidas no mesmo saco; as boas, as melhores, as assim assim. Pôrra, escaqueirem a loiça de uma vez por todas……….
         C C

(Este texto, publicado no blog Art&manha em 2007, andava perdido)


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